filosofia do gato
Rubem Alves*
Olho para
o meu gato e medito. Medito teologias. Diziam os teólogos de séculos atrás que
a harmonia da natureza deve ser o espelho onde os seres humanos devem buscar
suas perfeições. O gato é um ser da natureza. Olho para o gato como um espelho.
Não percebo nele nenhuma desarmonia. Sinto que devo imitá-lo.
Camus
observou que o que caracteriza os seres humanos é a sua recusa a serem o que
são. Eles não estão felizes com o que são. Querem ser outros, diferentes. Por
isso somos neuróticos, revolucionários e artistas. Do sentimento de revolta
surgem as criações que nos fazem grandes. Mas nesse momento eu não quero ser
grande. Quero simplesmente ter a saúde de corpo e de alma que tem o meu gato.
Ele está feliz com a sua condição de gato. Não pensa em criações que o farão
grande.
Ele dorme.
Nesse momento ele é um monge budista: nenhum desejo o perturba. Desejos são
tremores na placidez da alma. Ter um desejo é estar infeliz: falta-me alguma
coisa, por isso desejo... Do desejo nasce a insônia. Não tenho sono porque o
desejo não me deixa dormir. Mas para o meu gato nada falta. Ele é um ser
completo. Por isso ele pode se entregar ao calor do momento presente sem
desejar nada. E esse “entregar-se ao momento presente sem desejar nada” tem o
nome de preguiça. Preguiça é a virtude dos seres que estão em paz com a vida.
Por pura
brincadeira escrevi um livrinho sobre demônios e pecados. Os demônios continuam
soltos pelo mundo do jeito como sempre estiveram. Só que agora fazem uso de
disfarces. Até se rebatizaram com nomes diferentes, científicos. Lidando com os
demônios eu usei palavras filosóficas e psicanalíticas de exorcismo. Lidando
com os pecados eu usei palavras éticas de condenação.
Tudo ia
muito bem até que cheguei ao pecado da preguiça, que deveria ser condenado.
Preguiça é fazer nada. Nossa tradição religiosa nada sabe da espiritualidade
oriental do Taoísmo que faz do “fazer nada”, “wu-wei”, a virtude suprema.
E aí,
então, aquilo que deveria ser uma condenação do pecado da preguiça virou um
elogio às delícias e virtudes da preguiça.
Alguém
disse que preferia os gatos aos cachorros porque há cães com vocação e
profissão policiais, mas não há gatos policiais nem por vocação e nem por
profissão. Policiais existem para fazer cumprir e lei, o dever. Dentro de mim,
desgraçadamente, mora aquele cão policial a que Freud deu o nome de “superego”:
ele rosna ameaças e culpas todas as vezes em que me deito na rede.
Meu gato,
na sua imperturbável preguiça, me dá uma lição de filosofia. Não me dá ordens.
Ele deve ter aprendido do Tao-Te-Ching que diz que o homem verdadeiramente bom
não faz coisa alguma...
Estou
velho e quero que me seja dado o privilégio de me entregar à filosofia do meu
gato: fazer nada. Com consciência limpa repetir com Fernando Pessoa: “Ai que
prazer não cumprir um dever. Ter um livro para ler e não o fazer...”
Assim,
proponho que se acrescente aos direitos humanos já escritos, outro, para os
velhos: “Todos os velhos têm o direito à felicidade da preguiça”. Pois, como o Riobaldo
disse: “Ah, a gente, na velhice, carece de ter sua aragem de descanso...?”
Assim,
“vou descansar meu fardo no chão,
À margem
do rio...
Não vou
mais me preocupar com a guerra...
Vou por no
chão minha espada e meu escudo,
À margem
do rio...?
Como o
está fazendo agora o meu gato, dormindo deitado sobre a minha mesa de
trabalho”.
(FONTE: Rubens Alves ) - escritor; teólogo e educador. (perfeito lição de vida).
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